quinta-feira, 29 de julho de 2010

Alguns aspectos do fim da perseguição romana sobre a igreja primitiva

INTRODUÇÃO

O grão de mostarda, quando foi semeado, era a menor de todas as sementes sobre a terra. Esta semente cresceu e se tornou uma árvore enorme, com ramos sob os quais as aves do céu puderam descansar à sua sombra. A esta metáfora se assemelha o reino de Deus, segundo Jesus Cristo (Mc 4:30-32). Esta passagem bíblica é indicada por Pardo (1977, p. 101) como prenúncio de Cristo para o crescimento da igreja cristã a partir do século II, enquanto Mateus 24:9-10 é a passagem bíblica onde Jesus previa a futura perseguição da igreja.
O crescimento da igreja e a sua perseguição pelo Império Romano são fatos históricos que se encontram intimamente ligados pela relação causa e efeito. Assim como o crescimento da igreja foi uma das causas da perseguição romana, a perseguição romana também contribuiu, sob certo aspecto, com o futuro crescimento da igreja. As principais causas e efeitos das perseguições romanas serão objeto de estudo nos dois primeiros capítulos deste trabalho.
Pardo (op. cit., p. 103) ensina que as perseguições não foram gerais e contínuas em todo o império durante o período da igreja antiga. Houve tempo em que as perseguições cessavam durante períodos mais ou menos longos. Também neste sentido, Nichols (op. cit., p. 32) refere que tudo dependia das atitudes dos imperadores e dos governos regionais, existindo muitas épocas de trégua em algumas regiões ou mesmo em todo o império.
Para Pardo (op. cit., p. 105), os períodos mais graves e críticos das perseguições ocorreram durante o império de Nero (54 a 68), Domiciano (81 a 96), Trajano (99 a 117), Adriano (117 a 138), Marco Aurélio (161-180), Sétimo Severo (193 a 219), Maximino de Tracia (235 a 238), Decio (249 a 251), Valeriano (253 a 260) e Diocleciano (284 a 305). Como se vê, há muita história neste largo período de tempo e a investigação das perseguições promovidas por todos os imperadores não permitiria uma maior profundidade do estudo. Nestes termos, opta-se como critério limitativo pela realização de um estudo versando sobre a fase final das perseguições, durante o governo do imperador Diocleciano e do imperador Constantino, dedicando-se a cada período um capítulo deste trabalho. O objetivo é fazer alguns apontamentos sobre cada período imperial, relacionando tais períodos à atitude do Império em relação ao Cristianismo. Trata-se de um importante momento histórico de transição, pelo qual o Cristianismo passou da condição de igreja perseguida para a de religio licta.
Neste percurso, percebe-se o agir de Deus na vida da humanidade. Com as perseguições, algumas pessoas apostataram. Muitas pessoas permaneceram fiéis até o fim, foram martirizadas e morreram em nome da fé cristã. O grande e poderoso Império Romano ruiu, mas a igreja continua. O ser humano nada pode por si mesmo, mas o poder de Deus é infinito e eterno. É o que se pretende demonstrar neste trabalho por meio de um olhar histórico.

1. PRINCIPAIS CAUSAS DAS PERSEGUIÇÕES ROMANAS

De uma forma geral, os autores apontam as mesmas causas para as perseguições do Império Romano contra os cristãos. Como é possível depreender da enumeração das causas persecutórias, o Império Romano estava baseado em três alicerces principais: o trabalho escravo, o exército[1] e o culto ao imperador. Os romanos entenderam que o Cristianismo poderia abalar estes três alicerces, e consequentemente passaram a perseguir os cristãos. De fato, na medida em que o número de cristãos crescia, especialmente entre escravos e soldados, a sociedade ia sofrendo conseqüências que não agradavam ao império. Muitas das atitudes cristãs tampouco eram compreendidas pelo governo e pela sociedade da época. Assim, os autores tem relacionado como principais causas das perseguições a conversão de escravos e soldados, as interferências sociais e culturais resultantes das conversões e a negativa dos cristãos de prestarem culto ao imperador e aos deuses do império.
Para Pierrard (1982, p. 29), a duração e a violência da última perseguição aos cristãos, à qual o nome de Diocleciano esteve ligada, são explicadas pela vontade imperial de unificação administrativa e religiosa, pela impossibilidade dos cristãos deixaram de prestar culto exclusivo a Cristo, e pelo papel sempre mais importante desenvolvido pelo Cristianismo na sociedade romana.

1.1. A CONVERSÃO DE ESCRAVOS E SOLDADOS

Nichols (op. cit., pp. 28-30) refere que o Cristianismo cresceu sobremaneira entre o ano 100 e o reinado de Constantino, dominando a região da Ásia Menor e outras regiões importantes da época, assim como algumas regiões mais distantes, graças ao trabalho de missionários itinerantes (Justino), apologistas (Tertuliano) e mestres (Orígenes). Os cristãos comuns também foram responsáveis pelo crescimento do Cristianismo com seus testemunhos pessoais de amor fraternal, fidelidade e coragem nas perseguições. A classe mais poderosa do Cristianismo era constituída de pessoas humildes, ainda que o Cristianismo tenha se introduzido em todas as classes sociais, inclusive nas principais as hierarquias militares. A partir do século II era cada vez maior o número de soldados romanos cristãos. Sabe-se que a sociedade do Império Romano era formada em sua ampla maioria pelas pessoas menos favorecidas.
O Cristianismo pregava igualdade e liberdade, o que atraiu o interesse e a atenção dos escravos e dos soldados do Império Romano. Sabe-se que cerca de 3/4 da população do império era escrava. O Reino de Deus parecia oferecer ao povo status, prestígio, condição social muito atraente. Então, muitas pessoas começaram a freqüentar a igreja. Na carta a Filemom, Paulo escreve para que seu escravo seja recebido como irmão, e não como servo. Assim, as comunidades cristãs aboliram as diferenças sociais. Para Roma isto era uma afronta. E Roma começa a pensar que se todos seguissem a igreja em breve ocorreria uma grande revolução. Certamente seria uma revolução não armada, porque os cristãos não pegavam em armas.

1.2. INTERFERÊNCIAS SOCIAIS E CULTURAIS

A igreja chegava às cidades, começava a crescer, e gerava alguns problemas culturais e sociais. Por exemplo, os cristãos se negavam a comprar as carnes de sacrifícios. Em algumas cidades de peregrinos, como Jerusalém, os cristãos se recusam a participar de festas romanas. Então, as cidades começaram a reclamar das interferências dos cristãos. Os comerciantes já não vendiam tanto. Houve reclamações e manifestações, e os romanos passaram a temer interferências na paz que reinava no império. Em termos sociais, outro fato foi causa da perseguição dos cristãos, segundo Nichols (op. cit., p. 31): a realização de suas principais reuniões a portas fechadas, como a Ceia do Senhor. Aos olhos do governo, a igreja parecia uma sociedade secreta que crescia de forma assustadora.
Pardo (op. cit., p. 104) leciona que os cristãos afastaram-se dos templos dos deuses greco-romanos, do circo (um centro de grande imoralidade), dos teatros e dos demais espetáculos, isolando-se da sociedade pagã corrompida. Os cristãos eram chamados a ter uma vida limpa e exemplar, que era incompatível com a idolatria e com diversos costumes pagãos. A atitude cristã representava um verdadeiro ataque ao Império Romano. Nichols (op. cit., p. 31) refere que até o século III também havia uma hostilidade popular em relação aos cristãos, posto que não cultuavam o Estado, atitude que representava um símbolo de patriotismo, e se consideravam um povo à parte, escolhido por Deus. Sobre a hostilidade popular, Pierrard (1982, p. 28) escreve que:

“É inegável que a cólera do populacho, alimentada por maledicências, inveja, desgosto ou patriotismo exagerado, levou mais de um cristão aos tribunais e ao suplício: a multidão sempre foi covarde em relação às minorias e às pessoas vigiadas pela polícia.”

Também sobre o relacionamento dos cristãos com o povo pagão, Dreher (1993, p. 53) escreve que: “As perseguições tiveram, em geral, caráter local, devendo-se em grande parte à superstição do povo: uma epidemia, um terremoto, fome ou enchentes eram razões suficientes para fazer com que houvesse perseguições. As acusações eram apresentadas ao governador, que, mesmo estando convicto de sua inocência, tinha que abrir o processo, caso não quisesse ser visto como favorável aos cristãos. Dessa maneira, muitos cristãos perderam as suas vidas durante os governos de Trajano e de seus sucessores. Pessoas ilustres como Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Justino e muitos bispos foram martirizados naqueles dias. Os perseguidores atacavam primeiro o clero, para que as comunidades ficassem sem líderes. Às vezes, nós nos deparamos também com ações que atingiram toda uma comunidade. Aos que morreram confessando a fé a Igreja deu o nome de mártires”.
Finalmente, Walker (op. cit., p. 69) refere que havia uma presunção que o Cristianismo era indesejado e passível de punição. Esta presunção expôs cristãos à hostilidade popular e à perseguição e punições dos governadores imperiais. Deste modo, os cristãos eram mais motivo de desordens e tumultos locais, do que ameaça propriamente dita ao império. Conclui que:
“somos inclinados a concluir que a incidência real de perseguição dependia grandemente das atitudes e sentimentos dos cidadãos locais para com os cristãos e das medidas com que os governadores provinciais estavam querendo pacificar o sentimento popular cooperando com este. Esta conclusão é fundamentada, ademais, no caráter esporádico das primeiras perseguições.”

1.3. A NEGATIVA DOS CRISTÃOS EM PRESTAR CULTO AO IMPERADOR E AOS DEUSES DO IMPÉRIO ROMANO

Dreher (1993, p. 51) ensina que ao honrar os deuses oficiais, o cidadão prestava um testemunho de sua fidelidade ao Estado. O Estado era tolerante, pois entendia que todo mundo podia crer no que bem entendesse, desde que prestasse culto aos deuses oficiais. Os judeus não estavam obrigados ao culto aos deuses e ao imperador, pelo que os cristãos não foram incomodados neste ponto no período em que ainda eram confundidos como participantes de uma seita judaica ou de uma facção do Judaísmo. Quando essa visão pública se desfez, a partir do governo de Nero e da destruição de Jerusalém, os cristãos passaram a ter problemas, pois continuaram negando o culto realizado aos deuses oficiais e ao imperador.
Walker (2006, p. 67) também refere que Roma era tolerante em questões religiosas, pois entendia que cada cidade e nação do império podiam adorar suas próprias divindades, praticar seus rituais, tal qual fazia o Senado e o próprio povo romano. Todavia, exigiam como contrapartida que Roma e seus deuses recebessem a devida honra. Por outro lado, o império não aprovava práticas religiosas que parecessem imorais aos romanos ou que fossem ofensivas aos seus deuses, como por exemplo aquelas que praticavam sacrifício humano ou que praticassem ritos de forma reservada. Como mencionado no item 1.2, supra, aos olhos do governo, a igreja parecia uma sociedade secreta que crescia de forma assustadora.
Como leciona Nichols (op. cit., p. 30), o império permitia a livre prática de muitas religiões, mas o que realmente incomodava no Cristianismo era que seus adeptos eram obedientes e leais ao seu próprio Salvador, e não ao Estado. Não cultuavam outros deuses, especialmente aos deuses romanos, o que para império era um atentado ao patriotismo.
Pardo (op. cit., 104), neste ponto, esclarece que os imperadores haviam recebido por decreto do Senado títulos divinos, pelo que adorá-los importava em um ato de patriotismo e submissão. Os pagãos criam que a proteção e a grandeza do Estado dependiam dos diversos deuses da mitologia grega-romana. Os cristãos, por outro lado, aceitavam a existência de um único e verdadeiro Deus, e de um único mediador entre Deus e os seres humanos, qual seja, Jesus Cristo.
O início do culto ao imperador ocorreu por volta do ano 40 a.C., com o imperador chamado Júlio César. Este conseguiu, finalmente, vencer a guerra e estabelecer a “pax romana”. Vencidos os inimigos, o imperador estabeleceu a ordem. Por conta disto, o senado romano resolveu dar títulos ao imperador, como por exemplo, o de Augusto, que significa divino. Depois o imperador recebeu o título de Pontífice Maximus, ou seja, o mediador máximo, que faz a mediação, a ponte, entre os deuses e a humanidade. Com isto, a figura do imperador tornou-se idolatrada e temida. O resultado disto foi a construção de templos para homenagear o imperador. Toda cidade queria agradar ao imperador, construindo templos e neles colocando as imagens de César. Para Roma, isto era bom, porque resultava em alianças, evitando revoltas. Todos os demais imperadores passaram a receber estas homenagens. No ano 250, o imperador Décio promulgou um edito obrigando todos os habitantes do Império Romano a sacrificar aos deuses e ao gênio do Imperador, sendo que os que ofereciam tais sacrifícios recebiam um certificado (Dreher, op. cit., 54). O objetivo do edito era combater “as forças desagregadoras dos cultos orientais”, mas acabou atingindo os cristãos da época.
Os novos cristãos começaram a não freqüentar os templos, e a não atender os chamados para prestar cultos, como faziam antes. A igreja começa a ser vista como algo perigoso, pela desobediência ao estado. Os judeus tinham o benefício de não prestar culto ao imperador, graças ao acordo conseguido por Herodes. Segundo Walker (op. cit., p. 67), “os romanos tendiam a repugnar o proselitismo judaico e tentaram mais de uma vez tornar o judaísmo menos visível na própria Roma, eles não obstante chegaram até mesmo a dispensar os judeus da participação no culto imperial”. Não obstante, o crescimento dos cristãos entre os gentios também foi causa do desaparecimento deste benefício. Enfim, Roma percebe que estes gentios não são judeus. Paulo manda uma carta para a igreja dizendo que alguns cristãos estavam voltando ao Judaísmo com medo da perseguição.
Depreende-se, facilmente, a percepção romana de que Jesus Cristo “concorria” com o Imperador, representando, portanto, uma ameaça.

2. PRINCIPAIS EFEITOS DAS PERSEGUIÇÕES ROMANAS

2.1. CARÁTER MORAL DA IGREJA

Conforme Nichols (op. cit., p. 33), as grandes perseguições moldaram o caráter moral da Igreja. Nas dificuldades, apenas pessoas fieis e zelosas professavam a fé em Cristo, já que isto constituía uma hostilidade ao governo. E fato que durante os períodos de paz, muitos aderiam à Igreja, o que baixava o nível médio moral dos cristãos. Com o reinício das perseguições, os fracos não resistiam na manutenção de sua fé.

2.2. OS APOLOGISTAS

Walker (op. cit., p. 71) menciona que as acusações feitas aos cristãos e o não reconhecimento do Cristianismo como religio licita, ou religião autorizada, impeliu diversos fieis a testemunharem seu sofrimento e a explicar e defender a sua fé. Os escritores desta época, nomeadamente do período que medeia os anos 130 a 180, foram conhecidos como apologistas. A palavra grega apologia significa o discurso para a defesa. Exemplo dos apologistas citados são Quadratus (125), Aristides (140), Justino Mártir (meados do II século), Melito de Sardes (entre 169 a 180), Atenágoras (177) e o bispo Teófilo de Antioquia. Eram escritos com linguagem das classes mais instruídas que se constituíram nas “primeiras explicações arrazoadas das convicções da igreja.” Naturalmente, tais escritos contribuíram de forma indiscutível para a atual compreensão da fé cristã durante o período da igreja antiga, assim como para a formação da teologia atual.

2.3. O FORTALECIMENTO DA FÉ CRISTÃ

Jesus Cristo disse em João 15:20: “se a mim me perseguiram, também vos perseguirão a vós; se guardarem a minha palavra, também guardarão a vossa.” Assim como Cristo morreu pelo evangelho que pregava, muitos outros foram martirizados e mortos em nome de Jesus. As perseguições que buscavam extinguir de vez o Cristianismo, tiveram um efeito bastante diverso daqueles esperados pelo Império Romano. As perseguições fortaleceram a fé cristã.
É fato que muitos apostataram da sua fé, outros até pagaram para sobreviver ou para que alguém morresse em seu lugar. Não obstante, o exemplo dos mártires da igreja fez com que muitos cristãos considerassem que também podiam morrer pelo evangelho de Cristo. Era uma honra para os cristãos, desde Estevão, o primeiro mártir. Com efeito, desde a perseguição promovida pelos próprios judeus (At. 5:41), cristãos regozijavam-se “de terem sido julgados dignos de padecer afronta pelo nome de Jesus”.
As perseguições também constituíram oportunidades para testemunhos para evangelização. Diz-se que Inácio de Antioquia estava sendo levado para ser jogado aos leões quando lhe ofereceram a oportunidade de escapar da morte mediante a negativa de Cristo. Ele respondeu que os dentes das feras eram como serrilhas que trituram o trigo, para que através do pão, as pessoas possam se alimentar espiritualmente do Reino de Deus. Ou seja, o corpo dele seria alimento para a fé de outras pessoas, o que de fato ocorreu. Muitas pessoas se convertiam ao ouvir os testemunhos dos martirizados.


3. O ÁPICE DAS PERSEGUIÇÕES: DIOCLECIANO

3.1. A SITUAÇÃO CRISTÃ NO INÍCIO DO GOVERNO DE DIOCLECIANO

A primeira impressão que se tem das atitudes dos imperadores romanos que perseguiram o Cristianismo é que, desde seu primeiro dia de governo, tomavam medidas para tentar reprimir ou mesmo extinguir a igreja. Esta premissa não é verdadeira, como se percebe na situação específica de Diocleciano.
Pardo (op. cit., p. 118) ensina que no início do governo de Diocleciano, os cristãos gozavam de bastante liberdade e segurança, a tal ponto de terem construído a igreja de Nicomédia em frente ao Palácio Imperial. O monarca reconhecia que o império atravessava um momento crítico e decadente, e que existia a necessidade de um avivamento da religião estatal. Diocleciano também entendia que a perseguição não seria uma forma adequada para obter este avivamento, e que o derramamento de sangue apenas traria comoções prejudiciais ao império. Então, para conseguir dar ao império um novo impulso, Diocleciano associou-se a Maximinio, a Galério e a Constancio Cloro. O primeiro tinha título de Augusto e estes dois últimos o título de César. Galério era genro de Diocleciano, e Constancio veio a ser pai de Constantino.
Nichols (op. cit., p. 32) leciona que a “Pax Longa” vigente entre 260 e 303, durante o governo do imperador Galieno e em parte do governo de Diocleciano, a igreja cresceu em número, poder e organização, o que lhe permitiu suportar a última das perseguições nas mãos de Diocleciano. Dreher (op. cit., p. 56) leciona que no início de seu governo, Diocleciano tolerou o Cristianismo que havia crescido sobremaneira nos últimos decênios, sendo que na própria corte havia muitos oficiais e militares cristãos. Ainda, eram cristãs a sua esposa Prisca e a sua filha Valéria. Em verdade, como esclarece Walker (op. cit., p. 142-143), neste período o império esteve mais ocupado em resolver questões relativas a invasões externas, e ainda, sucessivamente, questões a respeito da reforma interna e recriação da ordem desestabilizada, do que preocupar-se com a questão dos cristãos.

3.2. A DIVISÃO DO GOVERNO E O FUTURO EFEITO NA PERSEGUIÇÃO

Nichols (op. cit., p. 28) leciona que Diocleciano percebeu a dificuldade de administrar um império tão amplo, idealizando uma divisão de autoridade entre quatro governadores. Como esclarece Walker (op. cit., p. 148), “o império era um, ainda que seus governantes fossem quatro”.
Dreher (op. cit., p. 55) refere-se à divisão administrativa do império, com a nomeação de Maximiano como imperador, co-regente de Diocleciano. Maximiano recebeu o título de Augusto, governando sobre o Ocidente, desde a capital Milão. Diocleciano governava o Oriente, desde a capital Nicomédia. No entanto, estava bastante clara a subordinação de Maximiano a Diocleciano, inclusive pelos cognomes por eles adotados, “Herculius” e “Jovius”, respectivamente. Diocleciano também nomeou Galério e Constâncio como Césares do Oriente e do Ocidente, respectivamente, que seriam os sucessores dos imperadores.
Na condição de César, Galério exerceu forte e importante influência sobre Diocleciano no que diz respeito à perseguição aos cristãos, como restará demonstrado a seguir.
3.3. A PERSEGUIÇÃO PROMOVIDA POR DIOCLECIANO

De acordo com Pardo (op. cit., p. 119), Galério era um pagão fanático e pediu a Diocleciano que obrigasse todos aqueles que prestavam serviço militar que tomassem parte nas cerimônias oficiais pagãs, dos quais até então os cristãos eram dispensados, ou que, do contrário, renunciassem aos seus postos. De acordo com o testemunho de Eusébio, muitos oficiais de alta hierarquia renunciaram, sendo que outros foram mortos porque acusados de falta de respeito e insubordinação pelas palavras e ações adotadas por ocasião da renúncia. No ano 303, após visita de Galério e dos altos oficiais do Estado, Diocleciano assinou o primeiro decreto determinando uma perseguição geral aos cristãos, que consistiu na degradação dos fiéis da alta sociedade, na destruição de templos e de livros sagrados do Cristianismo, no martírio dos que se opunham. O segundo decreto de Diocleciano determinou a prisão dos membros do clero, submetendo-os às torturas mais severas até que oferecessem sacrifícios aos deuses romanos. Esta pena foi estendida aos leigos, que também eram conduzidos ao trabalho forçado em minas. Este decreto surgiu após a destruição do templo de Nicomedia e de um sucessivo e mal explicado incêndio no palácio imperial, de cuja autoria os cristãos foram acusados. Com a queda de Diocleciano em 305, o poder passou para as mãos de Galério no Oriente e de Constancio no Ocidente. Embora Constancio tenha determinado o fechamento de algumas igrejas e a demolição de outras, ele não era favorável às perseguições. Galério, por sua vez, continuou a perseguição até 311, quando ficou gravemente doente.
Ainda sobre a perseguição promovida por Diocleciano, Dreher (op. cit., p. 56) afirma que no ano 300 este imperador iniciou uma “operação limpeza” no exército, determinando a todos os soldados que realizassem sacrifícios, sob pena de afastamento. Os altos oficiais exigiam a eliminação do Cristianismo, pois entendiam que a igreja era quase um estado dentro do Estado. Dentre os que tinham esta intenção apresentava-se Galério. Segundo Dreher, esta também era a vontade de Diocleciano que, porém, divergia quanto à tática. Diocleciano era mais sábio que Galério, e inicialmente tinha dúvidas sobre o sucesso de um ataque radical aos cristãos. Quando decidiu, após a consulta a um oráculo[2], publicou 4 editos entre fevereiro de 303 e maio de 305, determinando destruição dos lugares de culto, confisco de livros bíblicos e litúrgicos, perda de direitos civis e de cargos públicos, prisão dos clérigos e morte àqueles que se negavam a oferecer sacrifícios. Em maio de 305, Diocleciano e Maximiano renunciaram, assumindo como imperadores Galério e Constâncio. Com a morte subsequente de Constâncio em 306, o exército proclamou Constantino como Augusto, sendo que este reconhecimento militar não se deu sem pouca luta. Com Constantino, ao menos no Ocidente, os cristãos conheceram a paz.
Também Pierrard (op. cit., p. 41) refere que em 305, Maximiano e Diocleciano abdicam o poder em favor de Constâncio e Galério, que designaram como Césares Severo e Maximino Daia. Constantino, filho de Constâncio derrotou Maxêncio, filho de Maximiano, em 28/10/312. Seis meses mais tarde, Licínio - que foi designado como Augusto em 307 após a morte de Severo - derrotou Maximino Daia. Assim, as capitais do império passaram a ser apenas Roma e Nicomédia (Ásia Menor). Esta forma de governo não durou muito tempo, sendo que Constantino tornou-se o único imperador no ano 323. Em 324, este imperador transformou Bizâncio na cidade de Constantinopla, criando uma “nova Roma”.

4. O FIM DAS PERSEGUIÇÕES: CONSTANTINO

4.1. O INÍCIO DO GOVERNO DE CONSTANTINO E A SUA CONVERSÃO

Conforme mencionado anteriormente, com a morte de Constancio em 306 as legiões romanas juraram fidelidade a Constantino, sucedendo o pai no governo do ocidente, ao mesmo tempo em que Magêncio (ou Maxêncio) era proclamado imperador em Roma (Pardo, op. cit., 120). Durante a disputa pelo governo do Império entre Magêncio e Constantino, este teve uma visão enquanto orava ao Deus dos cristãos pedindo a vitória. Ele viu no céu uma cruz brilhante e uma frase escrita abaixo dela dizendo “com este sinal vencerá”. Na noite seguinte, Constantino teria visto Jesus Cristo com o mesmo símbolo, dizendo que fizesse um estandarte com o monograma de Cristo, que passou a ser chamado de lábaro. Depois da visão, Constantino chamou a vários mestres cristãos, indagando-lhes sobre a visão. No ano 312, as hostes de Constantino destruíram completamente o exército de Magêncio, em Saxa Rubra, a cerca de 15 km de Roma. No Fórum Romano, ergueu-se uma estátua do imperador segurando uma cruz, com a seguinte inscrição: “por meio deste sinal saudável, o verdadeiro símbolo de valor, libertei a cidade do jugo do tirano”. Foram pintadas cruzes nos capacetes e nos escudos dos soldados.
Segundo Nichols (op. cit., p. 42), em verdade Constantino percebeu que o Cristianismo crescia e não podia ser destruído, fortificando-se cada vez mais. Talvez tenha sido convencido de que o Deus dos cristãos era forte e que a oração deles poderia abençoar seu próprio governo. Também deve ter percebido que o Cristianismo forte poderia colaborar na unificação de todos os povos do império. Em que pese sua simpatia pelo Cristianismo, suas atitudes não tinham a influência da moral cristã, e seu batismo somente ocorreu pouco antes da morte. O fato é que a conversão de Constantino teve importante efeito na sobrevivência e no futuro da igreja. Este efeito teve início na igreja localizada no império ocidental. Mas o próprio Galério, que governava o Oriente, percebeu ao fim de sua vida que era ineficaz continuar perseguindo a igreja.

4.2. OS ÉDITOS DE LIBERDADE PARA OS CRISTÃOS DO ORIENTE E DO OCIDENTE

Nichols (1981, p. 32) ensina que no ano 311 Galério, o imperador do Oriente, fez publicar um Édito de Tolerância reconhecendo a insânia da perseguição aos cristãos. Segundo Pardo (op. cit., p. 120), Galério, que reconheceu seu fracasso em tentar destruir a fé cristã e que concluiu que sua doença decorria da vingança do Deus cristão, fez constar no mencionado Édito:
“Já que muitos continuam na mesma ignorância e vemos que não oferecem aos deuses celestiais o culto que lhes é devido, nem tampouco servem ao Deus dos cristãos, em consideração da nossa boa vontade e nosso costume invariável de estender nossa indulgência a isto também, permitindo que outra vez sejam cristãos e que possam reedificar os edifícios em que costumavam congregar-se, com a condição de que nada façam contrário à boa disciplina.”
Dreher (op. cit., p. 57) transcreve o mesmo Édito de tolerância de forma mais extensa, esclarecendo que Galério o assinou 5 dias antes de sua morte. O Édito também foi publicado em nome de Licínio e Constantino, sendo que Maximino Daza negou-se a assiná-lo:
“Entre outras providências para promover o bem duradouro da comunidade, temo-nos empenhado em restaurar o funcionamento das instituições e da ordem social do Estado. Foi nosso especial desejo que retornem ao correto os cristãos que têm abandonado a religião de seus pais. Após a publicação de nosso Édito, ordenando o retorno dos cristãos às instituições tradicionais, muitos deles foram constrangidos a decidir-se mediante o temor, e outros passaram a viver uma atmosfera de perigos e intranqüilidade. Sendo, porém, que muitos persistem em suas opiniões e evidenciando-se que, hoje, nem reverenciam os deuses, nem veneram seu próprio deus, nós, usando da nossa habitual clemência em perdoar a todos, temos por bem indultar a esses homens, outorgando-lhes do direito de existir novamente e de reconstruir seus templos, com a ressalva de que não ofendam a tranqüilidade pública. Seguirá uma instrução aos magistrados de como se devem portar nesta matéria. Os cristãos, por esta indulgência, obrigar-se-ão a orar a seu Deus por nossa convalescença, em benefício do bem geral e do seu bem estar em particular, de modo que o Estado seja preservado do perigo e eles mesmos vivam a salvo no seu lar.”
De acordo com Pardo (op. cit., p .121), no ano 313, Constantino e o outro imperador Licínio expediram o Édito de Milão, que assegurou a liberdade de culto cristão e determinou a restituição das igrejas e propriedades retiradas das comunidades cristãs. A partir de então, passou a existir o que se chama a paz da igreja.

4.3. O FAVORECIMENTO DE CONSTANTINO AO CRISTIANISMO

Como mencionado anteriormente, a conversão de Constantino teve importante efeito na sobrevivência e no futuro da igreja. Após a sua conversão, Constantino favoreceu a igreja de diversas formas.
Segundo Nichols (op. cit., p. 43), Constantino favoreceu o Cristianismo com a concessão de liberdade de culto, com ofertas valiosas para a construção de templos, com a manutenção do clero, com a isenção de impostos, com a adoção do lábaro como sinal imperial e com importante ajuda para dirimir disputas doutrinárias.
Como exemplo da ajuda do imperador na solução das disputas doutrinárias encontra-se a sua participação no Concilio de Nicéia, em 325, o primeiro Concílio Geral da Igreja. Sobre ele, Nichols (op. cit., p. 48) leciona que Ário, presbítero de Alexandria, pregava que Jesus não tinha sido nem homem nem Deus, mas um intermediário entre a divindade e a humanidade. Atanásio era o grande oponente de Ário. Constantino convocou o Concílio para pacificar os ânimos e influenciou na decisão que representava o entendimento majoritário dos bispos. Atanásio venceu, e ficou decidido que Cristo era da mesma substância do Pai, resultando no Credo Niceno. Jesus era o Salvador e não podia ser senão o Deus. No século seguinte, no quarto Concílio Geral da Igreja, na Calcedônia (451), confirmou-se o Credo Niceno, e reconheceu-se que Cristo tinha tanto a natureza divina como a humana.
A liberdade de culto e o auxílio financeiro concedido por Constantino, por certo, transformaram a igreja antiga em uma nova igreja. Certamente, a igreja já não precisava viver à margem da legalidade, encontrando apoio para subsistir no próprio governo. Templos foram construídos e a igreja se estruturou. Assim, Constantino representou uma mudança radical nos rumos da igreja cristã, colaborando diretamente com o atual estágio do Cristianismo.
CONCLUSÃO

Deus onisciente sabia previamente o que o ser humano sofreria no mundo em nome da verdade. Jesus Cristo, enquanto viveu neste mundo, advertiu seus apóstolos e seguidores que haveria perseguições e sofrimentos terrenos. Por certo, Deus também sabia que tudo o que se passou na história era necessário para que a igreja chegasse até estes dias.
Os interesses humanos do Estado Romano foram a causa principal da perseguição dos cristãos. As crenças e os hábitos cristãos abalaram toda uma sociedade, até então dominada pelo paganismo ou adstrita aos limites rígidos da doutrina judaica.
A revolução de vida de uma minoria atraiu a atenção de muitas pessoas, a maioria de origem humilde e dominada pelo poder vigente à época. Os valores cristãos passaram a ser acolhidos pelos menos favorecidos e, depois, introduziu-se em todas as esferas da sociedade do Império Romano. A igreja cresceu a olhos vistos. Nas épocas e nas regiões em que as perseguições tornavam-se mais severas, permaneciam apenas os realmente convertidos.
O martírio, as mortes e as restrições de liberdade fortaleceram a fé cristã. Todos que tentaram extinguir o Cristianismo fracassaram. Diocleciano convenceu-se de que isto era impossível e abdicou do Poder. Constantino sabiamente constatou que se não podia vencer o Cristianismo, poderia trazer os cristãos para o seu lado, e assim o fez, o que acabou transformando a igreja. Com Constantino, uma nova igreja surgiu.
A paz reinou na igreja colocando fim às perseguições, às mortes e aos martírios. O povo cristão então passou a usufruir a liberdade de culto e de religião. A igreja foi amplamente beneficiada com recursos financeiros aportados pelo imperador, o que permitiu a construção de templos e a organização eclesiástica. Crises internas passaram a ser resolvidas com o auxílio e o apoio do próprio governo imperial. A igreja chegou a conceder o título de 12º apóstolo para Constantino.
Se a igreja foi beneficiada pela condição de religião reconhecida pelo Estado, nem tudo foi realmente benéfico. A igreja perdeu sua voz profética, na medida em que não se podia criticar a igreja protegida pelo próprio Império. Quem ousaria? Também por isto, muitos passaram a se reconhecer cristãos, mas sem verdadeira conversão, agindo apenas para agradar o próprio governo imperial. O próprio imperador Constantino, batizado apenas em seu leito de morte, viveu sem dar um bom testemunho cristão. A igreja, por sua vez, foi obrigada a aceitar tanto o modo de agir do Imperador como a receber certas doutrinas que implicaram em um sincretismo religioso na própria igreja.
O fato é que a igreja sobreviveu a este período e chegou aos dias atuais. O então invencível Império Romano já não existe mais. Este período histórico serve como grande testemunho do poder de Deus e da força do evangelho de Cristo, a demonstrar que o ser humano nada pode por si mesmo. O testemunho também ensina os atuais cristãos a perseverar na fé e a não se render a dificuldades, por piores que sejam.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. Vol. 1, São Leopoldo: Sinodal, 1993.
NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã, 5 ed. rev., São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1981.
PARDO, José Maria di. Tratado de “Historia Eclesiástica”: los siglos primeiros (I a IV), Barcelona: A.L.E.R.T.A, 1977.
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. Álvaro Cunha (trad.). 4. ed., São Paulo: Paulus, 1982.
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. Paulo D. Siepierski (trad.), 3. ed., São Paulo: Aste, 2006.


NOTAS

[1] Segundo Dreher (1993, p. 54), a partir da morte do imperador Cômodo, em 192, os imperadores “passaram a ser nomeados pelo exército.”
[2] Conforme Walker (op.cit., p. 149), “Diocleciano enviou ao oráculo de Apolo, em Mileto, uma inquirição sobre que curso ele deveria seguir” diante do comportamento dos cristãos dentro do exército romano, sendo que a “a resposta foi desfavorável para os cristãos”. A partir de então, Diocleciano passou a perseguir os cristãos.
Ensaio monográfico apresentado em cumprimento às exigências da disciplina de História da Igreja I do Curso de Bacharel em Teologia da Faculdade Teológica Sul Americana, ministrada pelo Prof. Wander de Lara Proença.

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