quinta-feira, 29 de julho de 2010

A epístola de Paulo aos Filipenses

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objeto o estudo realizado a respeito da Epístola de Paulo aos Filipenses, observando o método de pesquisa bibliográfica. Trata-se de uma primeira aproximação que, certamente, instigará a um estudo futuro mais aprofundado, que desde logo pretende fomentar uma compreensão inicial, além de uma contínua reflexão sobre a mensagem do apóstolo.
Com o objetivo de melhor compreender a mensagem paulina neste livro bíblico, o trabalho encontra-se dividido em três partes principais. A primeira parte destina-se à análise literária do livro, buscando identificar a sua autoria, a data e o local da escrita, assim como os destinatários da carta. Na segunda parte, pretende-se investigar o contexto histórico de Filipos e, no período da carta, o respectivo contexto social, econômico, político, cultural e religioso da comunidade daquela cidade. Finalmente, na terceira e última parte, o estudo busca identificar três temas teológicos que podem ser encontrados no livro de Filipenses.
Ao final, serão mencionadas as principais conclusões resultantes desta pesquisa, alcançadas com base nas informações coletadas e analisadas.

1. ANÁLISE LITERÁRIA

1.1. AUTORIA DO LIVRO

Como será evidenciado neste trabalho, os doutrinadores divergem se a Epístola de Paulo aos Filipenses foi integralmente escrita por Paulo. Ainda, há divergências se a epístola refere-se a uma única carta ou a um conjunto de cartas posteriormente compiladas por uma terceira pessoa. Martin (1985, p. 23) refere-se a estas duas problemáticas utilizando as epígrafes autenticidade e integridade da carta, respectivamente.

A autenticidade da carta

Comblin (1985, p.24) escreve que “na antiguidade, as cartas começam sempre pelo nome do autor, o nome do destinatário e uma breve fórmula de benção”. Nas suas cartas, Paulo sempre diz seu nome, sendo que em oito vezes associa outro nome ao seu, e em cinco vezes este outro nome é o de Timóteo, conforme Comblin. De fato, em Filipenses 1.1 constam como remetentes da carta Paulo e Timóteo, servos ou escravos de Cristo Jesus. Comblin refere que apesar de Timóteo aparecer como co-autor da carta, esta segue escrita na primeira pessoa, como por exemplo, “dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós” (Fl 1:3). Segundo o mesmo autor, Paulo compreendia o trabalho missionário como trabalho de equipe e possivelmente queria dar mais prestígio a Timóteo e associá-lo ao seu ministério. Sob este aspecto, portanto, a carta teria sido escrita por Paulo. Apenas formalmente Timóteo foi indicado por Paulo como co-autor da carta.
Não obstante a informação sobre a autoria da epístola contida em Filipenses 1.1, alguns autores identificam na carta alguns fragmentos que podem não ter sido escritos por Paulo. Estes fragmentos seriam, por exemplo, o hino cristológico em Filipenses 2:6-11, e algumas doxologias.
Martin (op. cit., p. 23) evidencia a posição de alguns autores de que Filipenses 2:6-11 seria “um hino pré-paulino, que Paulo tomou e incorporou à sua carta”. Quanto à mesma passagem do livro bíblico, Comblin (op. cit., p. 39)[1] refere-se a diversas possibilidades, segundo as quais alguns compreendem o hino como litúrgico, outros que o hino foi escrito pelo próprio Paulo antes das cartas, outros entendem que o hino foi escrito por outros autores, outros sustentam que Paulo alterou um texto primitivo que podia estar escrito em aramaico, e outros entendem que este hino já estava escrito antes de Jesus Cristo e que foi aplicado a Ele pelos cristãos. Entretanto, diante das diversas alusões a temas bíblicos, Comblin ressalta que quase há acordo de que o texto tenha sido escrito por cristãos.
As doxologias encontram-se em Filipenses 4:20 (“Ora, a nosso Deus e Pai seja a glória pelos séculos dos séculos, Amém!”) e em 4:23 (“A graça do Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito”). Doxologia refere-se a uma fórmula literária que expressa louvor e adoração, tal como se observa nos exemplos mencionados, que concluem a carta. De acordo com Martin (op. cit., p. 19), alguns eruditos entendem que as doxologias mencionadas foram incluídas no texto da carta pelo último editor, que uniu os fragmentos espalhados, como sua marca pessoal. Esta teoria compreende, como se verá no próximo subtítulo, que um último editor reuniu mais de uma carta de Paulo dando-lhe a unidade que se encontra presente atualmente no cânon.
Martin (op. cit., p. 24) conclui que “a maior parte dos intérpretes, mesmo aqueles que julgam ser 3:1-4:1 um fragmento interpolado, acreditam que a carta é paulina”. Acrescenta, ainda, que “o Carmen Christi de 2:6-11 pode perfeitamente ser anterior a Paulo, que o teria tomado, e possivelmente editado, com inclusão na carta.”
Deste modo, verifica-se, que a doutrina dominante compreende que a Epístola de Paulo aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo.

A integridade da carta

Neste ponto, o estudo versa sobre a problemática da Epístola aos Filipenses tratar-se de uma unidade ou de uma compilação de mais de um texto paulino, diante do questionamento levantado por alguns eruditos (Martin, op. cit., p. 23).
Martin (op. cit., pp. 24-27) relaciona evidências externas e internas que procuram demonstrar ora a unidade da carta, ora a sua natureza fragmentária. As evidências externas seriam elementos diversos da própria carta, enquanto as evidências internas estariam na própria carta. A primeira evidência externa seria a carta escrita por volta do ano 135 por Policarpo, bispo-mártir de Esmirna, onde consta que Paulo teria escrito cartas (plural, conforme a palavra grega epistolai) aos Filipenses. A outra evidência externa compreenderia dados que se tornaram disponíveis mais tarde, sobre a escrita de mais de uma carta aos Filipenses por Paulo. Martin, no entanto, entende que a prova da natureza fragmentária da carta deve ser buscada nas evidências internas. Estas se encontram em dois pontos principais da carta. No primeiro ponto, verifica-se uma modificação repentina do assunto, do estilo e do tom utilizado partir de Filipenses 3:1b e que segue até 4:1, onde o autor encerra com “sua reiterada chamada a permanecerem firmes no Senhor, contra qualquer perigo proveniente de mestres heréticos” (op. cit. p. 27). O segundo ponto é a nota de agradecimento de Filipenses 4:10-20, que se encontra deslocado do contexto e que poderia corresponder a um fragmento escrito anteriormente e incluso na carta principal. Martin faz um estudado aprofundado sobre as teorias que defende ora a unidade da carta ora sua natureza fragmentária, não sendo possível esmiuçá-las neste momento dentro da limitação a que se submete esta pesquisa.
Sobre o mesmo tema, Comblin (op. cit., p.8) refere que a atual Epístola aos Filipenses é, segundo a maioria dos comentaristas, uma compilação de três cartas distintas escritas por Paulo, posteriormente reunidas para facilitar a sua conservação e a comunicação. Por esta hipótese, as cartas originais se perderam e as cópias sucessivas passaram a ser feitas com base na epístola única, reunidas por um último editor. A hipótese se sustenta no próprio texto da epístola e na carta de Policarpo escrita no início do século II. Realmente, verifica-se uma ruptura a partir de Filipenses 3:2 quanto ao assunto e quanto ao tom suave e alegre utilizado até então, revelando que os textos podem ter sido escritos em circunstâncias diferentes. Ainda, Filipenses 4:10-20 constituiria um terceiro escrito, nomeadamente um bilhete de agradecimento fora do contexto temporal e lógico do texto imediatamente antecedente.
Nestes termos, Comblin (op. cit., p. 10-13) adota a hipótese das três cartas, divididas e mencionadas na correspondente ordem cronológica como carta A (Fl 4:10-20), carta B (Fl 1:1-3:1a, 4:2-7 e 4:21-23) e carta C (Fl 3:1b-4:1 e 4:8-9). A carta A corresponderia ao agradecimento à igreja de Filipos pela ajuda enviada por intermédio de Epafrodito enquanto Paulo estava preso. A carta B também foi escrita enquanto Paulo estava preso, acreditando alguns que ele previa uma morte iminente, enquanto outros, inclusive Comblin (op. cit., p. 11), entendem que Paulo confiava em uma libertação próxima com base em Filipenses 1:25-26. Em prol desta hipótese, o texto parece ser uma apologia contra adversários que criticavam Paulo pela escolha de viver para continuar evangelizando (Fl 1:22-24), ao invés de morrer como mártir, escolha esta possivelmente decorrente da invocação da sua condição de cidadão romano. A carta C já não fala mais de prisão, revelando que Paulo podia estar livre, mas preocupado com a ameaça da tranqüilidade da comunidade de Filipos por adversários (pela comparação com Gálatas e 2 Coríntios) possivelmente constituídos por missionários judeu-cristãos que pregavam uma visão “triunfalista” de Cristo centrada no valor das obras e milagres, ao invés da mensagem paulina centrada na cruz.
O estudo do contexto em que a carta ou os fragmentos da carta foram escritos torna-se importante para melhor compreender a mensagem de Paulo aos Filipenses. O estudo do contexto também demanda uma análise da data e do local em que a mensagem foi escrita.

1.2. DATA E LOCAL DA ESCRITA

De acordo com Comblin (op. cit., p. 13), as três cartas foram escritas com uma diferença de poucos meses, dentro de um período máximo de um ano. A data em que foram escritas depende do lugar onde estava Paulo preso. A dificuldade é que Paulo esteve preso muitas vezes, nem todas mencionadas expressamente no livro de Atos (Rm 16:7, 2 Cor 6:5; 11:23). Quanto ao local da prisão, Comblin (op. cit., p. 14) refere a idéia de que Paulo escreveu as cartas enquanto esteve preso em Éfeso, considerando que Roma e Cesaréia estavam muito distantes da cidade de Filipos ao tempo em que a Epístola menciona várias viagens entre a cidade da prisão e a cidade de Filipos. Para estabelecer a data da escrita, pode-se perquirir que, se a mencionada prisão de Paulo ocorreu em Roma, a Epístola foi escrita depois do ano 60. Se, sob outra vertente, foi escrita em Éfeso, ela pode ter sido escrita entre o fim de 52 e o início de 55, ou entre o fim de 54 e o início de 57, conforme a cronologia paulina que se adote.
Walker (2006, p. 40), igualmente, escreve que “quando de seu retorno a Éfeso, ele começou um ministério ali de alguns anos de duração (53?-56?) – um ministério que produziu sua correspondência com os coríntios e também, com toda probabilidade, suas cartas aos Gálatas, aos Filipenses e a Filemom.”
Martin (op. cit., pp. 49ss.), por sua vez, leciona que tradicionalmente a escrita da carta está associada ao tempo do cativeiro de Paulo em Roma (At 28:16-30), ressaltando que alguns autores, como Lightfoot, sustentam que a carta foi escrita no início do período de dois anos de prisão, diante da afinidade lingüística de Filipenses com Romanos, e da grande diferença com as cartas para os Colossenses e os Efésios. O estudo de Martin, no entanto, relaciona correntes doutrinárias que defendem que a Epístola tenha sido escrita em outros locais e, consequentemente, em outras datas, mencionando, como hipóteses as cidades de Corinto, Cesaréia e Éfeso, todas analisadas criticamente, com diversos pontos fracos e tantos outros pontos fortes.
Enfim, Martin (op. cit., p. 69) conclui que há um impasse quanto à data e a origem da carta, citando Dibelius que defende a dificuldade de se chegar a uma solução definitiva deste problema.

1.3. DESTINATÁRIO DO LIVRO

Filipenses 1.1 revela que a Epístola de Paulo é endereçada a todos os santos em Cristo Jesus, inclusive bispos e diáconos que vivem em Filipos. Conforme Comblin (op. cit., p. 24), os destinatários do livro seriam a igreja ou os santos, ou seja, a todos os membros da comunidade, uma vez que “o título de santos não exprime uma perfeição moral excepcional, e sim a pertença à comunidade cristã”. Ainda, o autor ressalta que os títulos originais dos dirigentes bíblicos da igreja contidos no texto eram epíscopos (guardião, inspetor) e diáconos (servidor), títulos civis e não religiosos relacionados às pessoas que dirigiam e exerciam autoridade na comunidade. À época, não havia bispos na igreja, pelo que epíscopo não poderia ser traduzido como bispo.
A Epístola de Paulo aos Filipenses revela a grande afeição do autor por aquela igreja. Martin (op. cit., p. 25) ressalta que Paulo havia escrito várias vezes aos Filipenses, “visto sabermos do caloroso afeto que Paulo sentia por esta igreja; e há registro da alta estima que ele nutria pelos filipenses, no mesmo Policarpo.” Dentro deste contexto de amizade entre Paulo e a igreja local, Comblin (op. cit., p. 7) relata que Paulo visitou Filipos cerca de 3 vezes. A primeira vez, em uma data não exata entre os anos 49 e 52, está descrita em Atos 16:11-40. A segunda oportunidade é mencionada em Atos 20:1-4 e em 2 Coríntios 7:5, e teria ocorrido por volta do outono de 57. A última rápida visita pode ter ocorrido próximo à Páscoa de 58, quando da viagem para Jerusalém narrada em Atos 20.6.
O sentimento de Paulo pela igreja de Filipos justifica a escrita da epístola, e deve ser considerado para melhor compreensão da mensagem. Comblin (op. cit., p. 15-18) refere que Paulo estava preocupado com a possibilidade dos filipenses serem perturbados por falsos pregadores vindos de outra região que pregavam um evangelho falso. Neste sentido, para a melhor compreensão da mensagem, também importa que se estude o contexto histórico de Filipos.

2. CONTEXTO HISTÓRICO DE FILIPOS

2.1. CONTEXTO HISTÓRICO, SOCIAL E ECONÔMICO

Quanto à origem histórica, Martin (op. cit., p. 16) ensina que antigamente Filipos era apenas um lugarejo chamado Crenides[2]. Martin (op. cit., p.16) e Proença (2001, p. 15) lecionam que no quarto século a.C. o rei Felipe II da Macedônia, pai de Alexandre Magno, tomou o lugar dos tracianos e ali construiu uma cidade fortificada, cujo nome lhe foi dado em homenagem ao seu fundador. Sobre a sequência da história de Filipos, são importantes as palavras de Proença (op. cit. P. 15):
“Nela o rei estabeleceu uma guarnição do seu exército, fazendo da mesma uma fortaleza militar para proteger algumas minas de ouro e guardar a importante via Inácia, estrada que ligava o Oriente ao Ocidente. Filipos tornou-se uma das mais importantes cidades da Macedônia no mundo antigo. No ano 169 a.C. em Pidna, Paulo Emílio derrota Perseu, rei da Macedônia, tornando-a então província romana. Mas Filipos, que fazia parte do primeiro dos quatro distritos que a compunham (At 16.12), continuou sendo uma importante cidade de revezamento na via Inácia. Em 42 a.C., esta cidade foi palco de uma importante batalha, em que Antônio e Otaviano derrotaram Brutus e Cássio, assassinos de Júlio César. Segundo Simon Légasse (1984, p. 7), ‘mal obtida a vitória, Antônio instalou ali uma poderosa guarnição militar, transformando-a em colônia’. Em 31 a.C., o imperador Otaviano deu a ela o nome de ‘Colônia Augusta Júlia Philippensis’”.
Lucas escreveu em Atos 16:12 que Filipos era “cidade da Macedônia, primeira do distrito e colônia”. Martin (op. cit., p. 16) esclarece que a província romana da Macedônia era dividida em quatro regiones ou subprovíncias, e que cada subprovíncia tinha uma primeira cidade. Neste caso, a primeira cidade da subprovíncia onde se localizava Filipos era Tessalônica. Por isto, Martim sugere que a melhor tradução da descrição de Lucas seria “uma importante cidade do distrito da Macedônia” ou uma cidade do “primeiro distrito da Macedônia”, e que a informação mais importante refere-se à condição filipense de colônia romana.
Também neste sentido, Comblin (op. cit., p. 7) descreve Filipos como um centro urbano comercial e militar de certa relevância da Macedônia, situado em uma estrada muito trafegada que ligava a Itália com a Ásia e era conhecida como Via Egnatia. A cidade tinha certos privilégios enquanto colônia romana, para onde eram designados os soldados romanos aposentados. Também viviam na cidade pessoas procedentes de todo o império, além da população autóctone.
Sobre a localização geográfica, é relevante evidenciar que além da importante estrada mencionada, a cidade ficava próxima do porto de Neápolis, atual Kavalla. Esta circunstância devia atrair o interesse pessoal e comercial de muitas pessoas procedentes de outras regiões do império.
No aspecto social, importante evidência da relevante participação das mulheres na sociedade filipense encontra-se em Atos 16:13-15. Com efeito, as mulheres estavam presentes no local de adoração junto ao rio. Porque Paulo – e os que com ele viajavam – falou às mulheres, faz parecer que homens não se faziam presentes. Lídia, que era temente a Deus, ouviu o que Paulo dizia, se converteu, foi batizada, e ofereceu sua própria casa para abrigar os que traziam a boa nova. Portanto, a presença das mulheres no lugar de adoração, e a iniciativa de Lídia, demonstram que as mulheres tinham alguma liderança naquela sociedade. Em Filipenses 4:2-3, também se vê que Evódia e Síntique eram mulheres que, juntas, se esforçaram com Paulo no evangelho, demonstrando a importância da atuação feminina em Filipos. Em que pese a aparente rivalidade, tratavam-se certamente de líderes da igreja local.
Em relação ao aspecto econômico, Comblin (op. cit., p. 20) refere que os filipenses eram pobres, mas não eram radicalmente miseráveis, na medida em que puderam pagar a viagem de Epafrodito e mandar ajuda econômica a Paulo. Também para Proença (op. cit., p. 17), as atitudes filipenses verificadas em 2 Coríntios 9:2-4 e Filipenses 4:16 “demonstram que mesmo não possuindo grande abastança, os filipenses eram solidários e ajudavam frequentemente aos necessitados.” Proença (op. cit., p. 18) ressalta, no entanto, a melhor situação financeira de algumas pessoas, especialmente Lídia que era comerciante de um produto de grande valor (púrpura), e o carcereiro convertido da cidade que, como empregado público, devia receber um salário razoável.

2.2. CONTEXTO POLÍTICO

Conforme mencionado, Filipos era uma colônia romana e isto lhe gerava alguns benefícios. Dentre estes, incluía-se “a aplicação da lei romana aos negócios locais e, às vezes, isenção de tributos e impostos”, assim como o privilégio do ius italicum (Martin, op. cit., p. 17). Este último direito, segundo o mesmo autor, importava em uma ficção legal pela qual os colonizadores tinham a posição legal, integral, como se estivessem em solo italiano, no que diz respeito “a propriedade, transferência de terra, pagamento de impostos, administração local, e leis”, o que também explicava a presença de oficiais romanos na cidade (como em At 16:22 e 35).
Bruce (1992, p.12) retrata que as colônias romanas eram constituídas seguindo o modelo de Roma (“cidade-mãe”), e possuíam um colegiado de dois magistrados conhecidos como duo uiri (ou duumuiri iuri dicundo que significava “dois homens que administram a justiça”), que na prática preferiam a denominação de pretores, e que eram auxiliados pelos lictores.

2.3. CONTEXTO CULTURAL E RELIGIOSO

Martin (op. cit., p. 19) descreve que o “clima religioso de Filipos era o de sincretismo”, mencionando adoração a deuses gregos, romanos e da religião indígena (traciana) oriunda da região. Os tracianos eram devotos de Artemis (a quem chamavam Bendis) e de Martes (que chamavam Mindrito). Outros deuses mencionados pelo autor são Silvano, Ísis, Serápis, Apolo, Asclépio, Mén e Cibele, além do imperador romano deificado da religião imperial.
Também Proença (op. cit., p. 16) ressalta o sincretismo religioso de Filipos, lecionando que “pelo fato de possuir uma população heterogênea, os cultos eram diversos: culto imperial, cultos indígenas (trácios), gregos, itálicos, anatólios, sírios, egípcios, dentre outros. Também estava presente ali um pequeno núcleo judeu, que, com seu monoteísmo estrito, desempenhava modesto papel”.
Segundo Proença (op. cit., p. 16), o surgimento da comunidade cristã de Filipos ocorreu por volta dos anos 49 e 52, quando Paulo e Silas chegaram à cidade durante a segunda viagem missionária. A conversão de Lídia e do carcereiro, com suas respectivas famílias, constituiu os “primeiros frutos da evangelização feita por estes dois missionários em solo europeu”.
Bruce (op. cit., p. 15) relata que “não havia uma comunidade judaica suficientemente grande para estabelecer-se uma congregação regular na sinagoga (para isso o quórum seria dez homens)”. Um lugar informal de reuniões seria fora da cidade, às margens do rio Gangites, local onde Paulo encontrou Lídia, negociante de púrpura.
Ao tempo em que Paulo escrevia a carta, ou as cartas, apresentam-se evidências internas de que adversários ameaçavam a igreja de Filipos. Paulo menciona tais inimigos em Filipenses 1:28, e igualmente em Filipenses 3:2 e 3:18-19. Para Martin (op. cit., p. 36), os adversários do capítulo 1 não são os mesmos inimigos do capítulo 3, sendo aqueles muito provavelmente oriundos do mundo pagão, enquanto estes eram crentes mal orientados que pervertiam a mensagem cristã. Em verdade, Martin (op. cit., pp. 36-42) evidencia uma grande controvérsia sobre a identidade dos adversários mencionados no capítulo 3, não existindo consenso se os “cães”, os “maus obreiros” e a “falsa circuncisão” de 3:2 corresponderiam aos mesmos inimigos da cruz de 3:18-19. Para o autor, no entanto, “parece claro o caráter judaico dos agitadores” (op. cit. p. 42), referindo que estudos recentes “demonstraram a extrema plausibilidade de que tais homens eram personagens carismáticas, que se vangloriavam de suas proezas espirituais e aspecto senhorial, que alegavam exibir o poder transcendental do Cristo exaltado, em suas vidas e serviço.”

3. PRINCIPAIS TEMAS TEOLÓGICOS E OBJETIVOS DO LIVRO

3.1. O EVANGELHO DA CRUZ

Para Proença (op. cit., p. 20), o hino cristológico contido em Filipenses 2:5-11 “exprime e traduz o conteúdo teológico da fé cristã”. Cristo que morreu na cruz, e ressuscitou, é o único senhor, encontrando-se acima de todos os poderes do mundo. O autor explica que Paulo tinha adversários em Filipos, possivelmente missionários judeu-cristãos, que percorriam as comunidades buscando manter parte do sistema judaico e, assim, destruindo o sentido “total e absoluto da salvação por meio da graça em Jesus Cristo”. Paulo se refere a estes cristãos judaizantes como inimigos da cruz de Cristo (Fp 3:18), como aqueles que só se preocupam com as coisas terrenas (Fp. 3:19).
A respeito do hino, Bruce (op. cit., p. 77) explica que “consiste numa declaração da obra salvífica de Deus, em Cristo, em sua auto-humilhação seguida de exaltação”. De fato, o hino se refere a Cristo que se esvaziou e assumiu a forma de servo, se humilhou e foi obediente até a morte de cruz, mas que foi exaltado por Deus para ser adorado e reconhecido por todos como senhor, para a glória de Deus Pai.
Comblin (op. cit., p. 18) ressalta que “o hino cristológico de 2,6.11 exprime exatamente o conteúdo do evangelho. Por isso, o lugar que ocupa na epístola é realmente central. Paulo achou neste hino a melhor expressão condensada do evangelho”. Jesus Cristo escolheu o caminho do cruz, e todos os seus verdadeiros apóstolos devem fazer o mesmo. Cristo dedicou sua vida ao serviço aos seres humanos, abandonando qualquer apoio, poder e até mesmo qualquer dignidade humana. O autor ressalta os quatro critérios do evangelho da cruz para reconhecer a real autoridade do apóstolo: a) a cruz é o único modo de libertação, sendo errado buscar apoio em tradições religiosas, ritos, sacrifícios, obras e manifestações visíveis do poder; b) qualquer forma de poder deve ser renunciada, sendo o correto esperar apenas de Jesus Cristo; c) seguir Jesus importa em um esvaziamento pessoal, onde o combate com todas as forças do mundo deve significar a disponibilidade para sofrer perseguição, prisão e morte; d) a missão resulta em servir, e não ser servido.

3.2. O CAMINHO DA HUMILDADE

Em Filipenses 2:1-5, Paulo faz exortação à igreja para que siga a Jesus Cristo, tendo o mesmo amor, com união de alma e com o mesmo sentimento, porém, não por partidarismo ou vanglória. O verdadeiro cristão deve manter a humildade, considerando os outros superiores a si mesmo. O cristão também deve ter em vista o que é dos outros, deixando de pensar apenas naquelas coisas que lhe pertencem. Cristo viveu desta forma, assumindo a forma de servo. Não veio para ser servido, mas para servir. Muito na igreja esquecem-se da lição de Cristo e pensam serem maiores que os outros.
Comblin (op. cit., p. 38) refere que “os perigos que ameaçam a mensagem da cruz de Cristo podem proceder não somente da parte de fora, mas também da parte de dentro. Dentro da própria comunidade pode haver desunião porque alguns querem exaltar-se e recusam o caminho da humilhação e do esvaziamento que é o caminho de Jesus, o caminho da cruz”. Ainda, na mesma página escreve o autor: “pois a vivência do caminho da cruz não se volta somente para a verdadeira fé que salva, ela favorece também a comunhão e a fraternidade dentro da comunidade. Se alguém se exalta, destrói a comunidade. Se alguém se rebaixa, ajuda a comunidade”. Na página 39, Comblin (op. cit.) prossegue:
“trata-se de não querer ser mais importante do que os outros invocando carismas, dons espirituais, fenômenos extraordinários. Não procurar prevalecer por causa de uma suposta superioridade espiritual. Não se trata de sentimentos, mas de disposições pessoais: querer julgar, apreciar, escolher as coisas de acordo com o discernimento de Jesus, isto é, seguindo a regra do esvaziamento e da cruz. Assim chegamos ao núcleo desta epístola, a proclamação do evangelho de Jesus Cristo.”
Como bem explica Proença (op. cit., p. 28),
“é objetivo do apóstolo mostrar que não se chega à glória sem o serviço, sem a humildade e a obediência. Foi este o caminho percorrido por Cristo. E a igreja deve caminhar, segundo o apóstolo, dentro dos parâmetros de tal caminho, para que realize de maneira fidedigna a tarefa de continuação que lhe fora confiada. Assim, a igreja é ao mesmo tempo fruto e instrumento da missão de Cristo. Em síntese, Paulo deseja mostrar à igreja que o caminho que conduz à glória e à vida passa necessariamente pela cruz.”
Fatalmente, a falta de humildade dos membros da igreja promove a desunião. Porém, os ensinamentos de Cristo pregam a comunhão, sendo este o próximo tema teológico evidenciado neste trabalho.

3.3. O CAMINHO DA COMUNHÃO

Conforme bem ressalta Bruce (op. cit., p. 30), “o propósito da carta só pode ser formulado após considerar-se todo seu conteúdo”. O autor menciona alguns objetivos de Paulo contidos no próprio livro, como por exemplo: a) o agradecimento aos filipenses da oferta da qual Epafrodito havia sido portador; b) o agradecimento à igreja de Filipos da sua participação geral e constante no ministério de Paulo; c) as informações a respeito da sua situação atual, com o fim de prepará-los para a iminente visita de Timóteo e para a sua própria visita subsequentemente; d) as advertências sobre os adversários da igreja. Porém, segundo Bruce, o principal propósito da epístola era evidenciar a importância do espírito de unidade entre os cristãos, concluindo que:
O exemplo de Cristo deveria inspirar seus seguidores no sentido de colocar os interesses dos outros diante de seus próprios interesses, e serem marcados pelo espírito de autonegação e auto-sacrifício espontâneo. Se aprendessem essa lição, não apenas transbordariam o cálice de Paulo com alegria mas também seriam liberados de tensões internas e seriam capazes de, juntos com Paulo, regozijar-se no Senhor.
Em Filipos, a bíblia menciona um exemplo específico de uma possível contenda pessoal que poderia acabar com a comunhão da igreja. Em Filipenses 4:2, Paulo rogou especificamente a Evódia e Síntique que pensem concordemente, no Senhor. Estas duas mulheres trabalharam juntas, se esforçando com Paulo no evangelho, mas pareciam estar subsequentemente discordando em suas posições. A discórdia devia, então, ser resolvida com humildade, para manter a comunhão da igreja. A concordância, no pensamento, deve ter como fundamento o Senhor, e jamais interesses pessoais fundamentados muitas vezes na própria vaidade.
Assim que, em Filipenses 1:27-30, Paulo prega a unicidade cristã na luta, de modo que o cristão esteja firme em um só espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evangélica.

CONCLUSÃO

A grande maioria dos doutrinadores conclui que a carta aos Filipenses do atual cânon foi escrita por Paulo. Ainda que o Carmen Christi tenha sido escrito anteriormente, por cristãos, acredita-se que o hino tenha sido aproveitado e incluído por Paulo na referida carta. A co-autoria de Timóteo é meramente formal, resultando talvez, do prestígio que Paulo queria dar a ele, associando-o ao seu ministério.
Há muitas teorias a respeito da unidade e da natureza fragmentária da carta sob estudo. Entretanto, parece que a realidade não poderá ser confirmada, já que a maioria das teorias compreende suposições ou interpretações baseadas em evidências. Trata-se de mero raciocínio humano, que busca ligar tais evidências entre si. Seja como for, importa para a atual comunidade cristã a fé de que este livro bíblico foi escrito mediante inspiração e intervenção do Espírito Santo.
Também há incertezas quanto à data e ao local da escrita da carta, o que depende da localidade onde Paulo esteve preso enquanto a escreveu. Trata-se também de um questionamento de difícil solução, porque muitas são as hipóteses, sendo que nenhuma pode ser efetivamente comprovada, senão por presunções e interpretações sempre sujeitas a outros questionamentos.
A maioria dos estudos revela que a carta foi escrita aos Filipenses, sendo certo que as lições de Paulo contidas na epístola podem ser contextualizadas para orientação da vida cristã dos dias atuais.
Filipos era uma importante cidade da Macedônia, especialmente em razão de sua condição de colônia romana e de sua posição geográfica na Via Egnatia, próximo ao porto de Neápolis (atual Kavalla). Em Filipos viviam muitos soldados aposentados e pessoas procedentes de todo o império, além da população autóctone.
As mulheres pareciam exercer importantes papéis na liderança da comunidade religiosa local. Em que pese se trate de uma comunidade pobre, mas não radicalmente miserável, era uma comunidade solidária e composta por algumas pessoas de melhor condição financeira, como Lídia e o carcereiro.
No campo político, havia certos privilégios civis aos residentes de Filipos, em razão de sua condição de colônia romana. Sua organização seguia o modelo de Roma, possuindo magistrados que preferiam a denominação de pretores.
No aspecto religioso, prevalecia o sincretismo, especialmente com adoração de deuses gregos, romanos e tracianos. Uma pequena comunidade judaica não era suficiente para manter uma sinagoga, sendo que um local informal de reuniões existia fora da cidade, nas margens do rio Gangites. Neste local, foi convertida Lídia, iniciando-se a igreja de Filipos. Ao tempo em que Paulo escreveu a carta, ele temia a atuação de adversários, alguns oriundos do mundo pagão e outros do mundo cristão-judeu, estes considerados por Paulo como verdadeiros inimigos da cruz de Cristo.
O primeiro tema teológico evidenciado consiste na salvação decorrente unicamente do evangelho da cruz de Cristo. Jesus Cristo que morreu na cruz, e ressuscitou, é o único Senhor, encontrando-se acima de todos os poderes do mundo. Ainda hoje, assim como em Filipos, há pessoas que se preocupam apenas com as coisas terrenas, e muitas vezes utilizam o evangelho para alcançar seus próprios interesses. Estes são verdadeiros inimigos da cruz de Cristo. O livro de Filipenses consiste em uma advertência aos atuais cristãos, para que sigam o exemplo de Jesus Cristo, para que busquem se esvaziar de si mesmos, procurem obedecer aos desígnios de Deus, e tenham uma vida de serviços à humanidade. É um equívoco buscar segurança apenas em tradições, ritos religiosos e manifestações de poder, quando o único caminho da salvação é aquele demonstrado por Cristo. Ele veio para servir, e não para ser servido.
Este primeiro tema se relaciona com outro tema teológico, que pode ser nominado como o caminho da humildade. Trata-se de um caminho que deve ser percorrido pela igreja, e especialmente pelos indivíduos que a compõem. Servir é preciso, mas não buscando reconhecimento pessoal. A igreja deve preservar a união, conservando o mesmo amor e o mesmo sentimento de Jesus Cristo, com humildade. Muito na igreja esquecem-se da lição de Cristo e pensam serem maiores que os outros. Estes pensam em si próprios, antes de pensar nos outros. Julgam-se portadores de uma superioridade espiritual imaginando que os dons espirituais lhe pertencem, olvidando que os dons pertencem ao Espírito Santo e são por Ele distribuídos com o propósito de glorificar a Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Aquela forma de agir e de pensar causa a desunião da igreja, representando uma verdadeira ameaça à mensagem da cruz de Cristo.
Cristo propõe o caminho da comunhão, sendo este o terceiro tema teológico identificado na epístola. A concordância, nos pensamentos e idéias da comunidade e de seus líderes, deve ter como fundamento o Senhor, e jamais interesses pessoais fundamentados muitas vezes na própria vaidade. A comunhão dos membros da igreja, enquanto corpo de Cristo, permitirá que a igreja esteja mais forte para prosseguir no cumprimento da missão que lhe foi confiada.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUCE, F.F. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo: filipenses. Oswaldo Ramos (trad.). São Paulo: Vida, 1992.
COMBLIN, José. Epístola aos Filipenses. Petrópolis: Vozes, 1985.
MARTIN, Ralph P. Filipenses: introdução e comentário. Oswaldo Ramos (trad.). São Paulo: Vida Nova, 1985.
PROENÇA, Wander de Lara. Cruz e Ressurreição: a identidade de Jesus para os nossos dias. Londrina: Descoberta, 2001.
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. Paulo D. Siepierski (trad.), 3. ed., São Paulo: Aste, 2006.


NOTAS

[1] Segundo Comblin este hino seria dividido em quatro estrofes, esclarecendo que há outras teorias quanto ao número de estrofes do mencionado hino. Proença (2001, p. 21) refere que J. Jeremias divide o hino em três estrofes, mas prefere a divisão feita por Légasse “em duas estrofes: primeira, movimento de descida e abaixamento; segunda, movimento de subida e exaltação.”
[2] Ou Krenides, termo grego que significa “fontes” de acordo com Bruce (1992, p. 12).
Ensaio monográfico apresentado em cumprimento às exigências da disciplina de Introdução ao Novo Testamento do Curso de Bacharel em Teologia da Faculdade Teológica Sul Americana, ministrada pelo Prof. Wander de Lara Proença.

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